segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

'Da República' de Fernando Pessoa

Acabei hoje mesmo de ler 'Da República', uma recolha de textos pessoanos por Mª Isabel Rocheta e Mª Paula Morão, organizada por Joel Serrão. Edições Ática.

Que posso eu dizer? Que surpreende, e não surpreende.

Surpreende, por descobrirmos ao longo destas páginas um Fernando Pessoa de uma lucidez política espantosa, interveniente (mesmo que a maior parte dos textos não tenham sido publicados em vida, o certo é que o seu carácter é nestes termos muito louvável), e por vezes de uma ironia ácida, acutilante.
Nestes textos, muitos deles não passando de meros esboços, rascunhos, frases, palavras, escritos entre 1910 e 1935, Pessoa apresenta-se-nos como um cidadão extremamente crítico do que foi a República - e nada melhor do que ler os grandes e os geniais da época para perceber o que se passou neste conturbado período da História nacional -, do que foi a República, dizia, e do que se sucedeu à implantação da República, e do que se sonhava como futuro para a República.

A postura de Pessoa oscila entre momentos de exasperação ante um Estado caótico, irresponsável, corrupto e outros momentos de esperança; chega a imaginar a República como uma transição para uma nova Monarquia, aplaude Sidónio, critica o Integralismo Lusitano, admira Salazar sem que o apoie (e di-lo várias vezes: não concorda com ele) mas, sobretudo, e isto é o mais fascinante, analisa todas estas questões com um incrivelmente apurada e auto-exigente argumentação.

Há frases tremendas que - infelizmente - continuam a fazer pleno sentido nos dias que correm, e é difícil compreender o motivo pelo qual se ignoram estes textos - nomeadamente o soberbo diálogo «Na Farmácia do Evaristo».

Mas isto tem em parte que ver com aquilo que não surpreende, e que apontei no início deste comentário: é que o discurso de Pessoa demonstra com uma facilidade desarmante tudo o que foi e o que se diz ser a República Portuguesa em termos que em nada a dignificam - antes pelo contrário. E isto não convém - mas não convém nada - à propaganda reles e demagógica que tem sido esta celebração do fatídico centenário...

Ora, para mim, foi impossível ler este conjunto de textos sem tomar centenas de apontamentos e sublinhar centenas de frases ou parágrafos inteiros. Não vou copiá-los todos para este blogue, mas não posso deixar de transcrever boa parte deles. São, de facto, Excertos Notáveis que merecem uma maior divulgação.


***


«(...) Aqueles portugueses do futuro, para quem porventura estas páginas encerrem qualquer lição, ou contenham qualquer esclarecimento, não devem esquecer que elas foram escritas numa época da Pátria em que havia minguado a estatura nacional dos homens e falido a panaceia abstracta dos sistemas. (...) Serão, talvez e oxalá, habitantes de um período mais feliz (...) aqueles que lerem, aproveitando, estas páginas arrancadas, na mágoa de um presente infeliz, à saudade imensa de um futuro melhor. (...)»

«(...) O grande mal dos modernos é ter perdido o senso comum sem ter aprendido a raciocinar. Isto é de resto apenas uma forma do mal de hoje: o termo-nos desligado do passado sem nos termos adaptado ainda ao futuro. (...)»

«(...) Nada encaram de frente. Pegam de cernelha os problemas. Não raciocinam; lêem. E acontece que, como não raciocinam, lêem mal. (...)»

«(...) Ostensivamente a decadência portuguesa tem princípio na anexação à Espanha (...)».

«(...) Há uma cousa chamada cunha; e essa cousa ao entrar, entra pela porta mais delgada. São assim os partidos revolucionários; o partido que entra e força a entrada é o partido informe, intelectual e moralmente. (...) Caluniar - não lavar os pés, ou, o que é pior, a cara, o que é para os olhos sociais mais gravemente evidente (...)»

«(...) Bandidos da pior espécie (muitas vezes, pessoalmente, bons rapazes e bons amigos - porque estas contradições, que aliás o não são, existem na vida), gatunos com seu quanto de ideal verdadeiro, anarquistas-natos com grandes patriotismos íntimos - de tudo isto vimos na açorda falsa que se seguiu à implantação do regimen a que, por contraste com a monarquia que o precedera, se decidiu chamar República.
A monarquia havia abusado das ditaduras; os republicanos passaram a legislar em ditadura, fazendo em ditadura as suas leis mais importantes, e nunca as submetendo a cortes constituintes, ou a qualquer espécie de cortes. A lei do divórcio, as leis de família, a lei de separação da Igreja do Estado - todas foram decretos ditatoriais, todas permanecem hoje, e ainda, decretos ditatoriais.
A monarquia havia desperdiçado, estúpida e imoralmente, os dinheiros públicos. O país, disse Dias Ferreira, era governado por quadrilhas de ladrões. E a república que veio multiplicou por qualquer coisa - concedamos generosamente que foi só por dois (e basta) - os escândalos financeiros da monarquia.
A monarquia, desagradando à Nação, e não saindo espontaneamente, criara um estado revolucionário. A república veio e criou dois ou três estados revolucionários. (...) A monarquia não conseguira resolver o problema da ordem; a república instituiu a desordem múltipla.
É alguém capaz de indicar um benefício, por leve que seja, que nos tenha advindo da proclamação da República? Não melhorámos em administração financeira, não melhorámos em administração geral, não temos mais paz, não temos sequer mais liberdade. Na monarquia era possível insultar por escrito impresso o Rei; na república não era possível, porque era perigoso, insultar até verbalmente o Sr. Afonso Costa. (...) E o regimen está, na verdade, expresso naquele ignóbil trapo que, imposto por uma reduzidíssima minoria de esfarrapados mentais, nos serve de bandeira nacional - trapo contrário à heráldica e à estética, porque duas cores se justapõem sem intervenção de um metal e porque é a mais feia coisa que se pode inventar em cor. Está ali contudo a alma do republicanismo português - o encarnado do sangue que derramaram e fizeram derramar, o verde da erva de que, por direito mental, devem alimentar-se. (...)»

«(...) A análise do dinamismo social permite a constatação de que as sociedades se dividem, na sua linha geral de vida evolutiva e tendência política em três grupos: os indiferentes, os equilibrados e os em desequilíbrio. (...) Todo o homem normal e são se interessa (...) na vida política, colaborando nela. Nos períodos de decadência social e, portanto individual, a indiferença pela política, o ignorá-la com o sentimento, ou o medo das reformas precisas, não ter ou energia ou tendência para, com o limitado esforço as querer melhorar - eis a indiferença patológica. (...)»

«(...) Os nossos políticos não são gente. Nenhum deles mostra ter tido na sua vida uma daquelas crises espirituais donde se emerge talvez ferido para sempre, mas psiquicamente homem, personalidade espiritual. São ateus pela mesma razão que o é um burro ou uma árvore. São portugueses porque, desgraça nossa, nasceram adentro da nossa fronteira, oriundos de gente que secularmente assim tinha feito. (...)»

«(...) Ora o dever de todo o homem que representa qualquer coisa em Portugal, hoje, é o de, afastado de toda a malandragem que faz política, prestar o seu auxílio, pequeno que seja, a essa criação de Portugal. (...)»

«(...) Refiro-me ao facto de que nenhum de nós tem Pátria. O Português é hoje um expatriado no seu próprio país. Somos uma nação, não uma pátria; somos um agregado humano sem aquela alma colectiva que constitui uma Pátria. Somos... Sei lá o que nós somos? (...)»

«(...) Pessoalmente, adiro a este conceito; julgo inútil e mesquinha a cura escrupulosa de seguir as tradições. O Portugal das descobertas não seguiu tradição nenhuma: criou-se. (...) Repare agora para o momento português actual. Qual das duas cousas lhe aparece aí a denunciar-lhe que Portugal é uma Pátria? Quebrámos com todas as tradições; até aqui nada há de mau. Resta saber se lhes substituímos qualquer coisa nova que seja de criação portuguesa. É assim? Qual é essa cousa? Os princípios em que assenta esta cousa a que se chama República Portuguesa: estes princípios são franceses. (...) Não há Portugal: há uma mistura ignóbil de «estrangeiros do interior» (...) a governar-nos e a estropiar-nos o resto do que somos. (...) Paiva Couceiro é um espírito ferrenhamente tradicionalista. Podemos não concordar (...) com esse conceito tradicionalista. Mas ele é sem dúvida um conceito de nacionalidade. É preferível a conceito nenhum. Dentro do tradicionalismo pode haver patriotismo; fora dele, e não havendo a criação de novos ideais absolutamente nacionais, não vejo que patriotismo possa haver. (...) Substituí-lo [a monarquia] por um regimen que, além de não ser nacional de modo nenhum, continuava as mesmas tradições (estas sim!) de gatunagem e de incompetência, agravando, se talvez não a gatunagem, por certo que a incompetência - eis uma cousa para a qual não valia a pena ter derramado sangue, perturbado a vida portuguesa, criado maior soma de desprezos por nós do que os que já havia no estrangeiro. (...)»

«(...) Um Portugal onde internacionalmente só se pode ser inglês; onde nacionalmente só se pode ser francês (pois que francesas sejam as ideias republicanas que nos «governam») - um Portugal onde, portanto, tudo se pode ser («tudo» é um modo de falar) menos português, que espécie de «Portugal independente» é que é? Que independência há nisto? Triste gente que se contenta com a triste aparência das cousas, e não vê um palmo adiante das sensações quotidianas, para dentro da sua alma súbdita e oprimida! (...)»

«(...) Mas não há ninguém que lhes possa dar prestígio. Se eles conseguissem erguer do túmulo Nuno Álvares, o Infante D. Henrique e Afonso de Albuquerque, e os conseguissem inscrever no Centro da Rua Ivens, o que resultaria era um grande desprestígio para esses vultos da nossa história. Moralmente já nada salva aquela caranguejola de patifes. Oxalá, moral ou fisicamente, haja alguma coisa que salve isto! (...) Mas não é verdade que é duro chegar-se a este ponto? Não é verdade que dói e envergonha um português ver que a este ponto se chega? (...)»
***


NA FARMÁCIA DO EVARISTO (excertos da primeira parte)


«(...) A farmácia do Evaristo, que estivera sempre aberta, começou a receber os seus estacionários do costume. (...) A voz alta do Mendes, republicano democrático, erguia-se congratulória. Nisto assomaram à porta os dois habituais que ainda faltavam. (...)
O José Gomes, mais conhecido por o Gomes Pipa, entrou lentamente na farmácia. (...) O Gomes vinha limpando a boca.
(...) - E o amigo Mendes contente com o restabelecimento da ordem, hain?
- Pois é claro...
- E com a conduta das tropas fiéis - isto é, fiéis àquilo a que foram fiéis?...
- Àquilo a que foram fiéis? Ao governo, que é a quem tinham obrigações de ser fiéis. Ao governo, à ordem, à disciplina, às instituições! Portaram-se bem, mas não fizeram senão a sua obrigação.
- Folgo muito, Sr. Mendes, disse o Gomes sentando-se num banco e puxando pela bolsa do tabaco; folgo muito, como amigo da ordem, em vê-lo apreciar devidamente a fidelidade ao dever jurado e à obrigação militar.
- Não vejo razão para folgar tanto! Como não pode haver dúvida que eles fizeram bem cumprindo o seu dever de militares, e até de cidadãos, não é de estranhar que se ache bem que eles o cumprissem...
- Sim, senhor, respondeu Gomes Pipa. Mas não é só por isso que eu folgo com o seu aplauso a eles (...). Folgo, sobretudo, como monárquico, com a condenação, que com isso o sr. fez, da revolução e dos revolucionários do 5 de Outubro.
- Hein? O quê? Do 5 de Outubro?
O Gomes enrolou lentamente o seu cigarro vulgar.
-Sim, do 5 de Outubro. Os militares e marinheiros, que no 5 de Outubro se revoltaram, tinham jurado, como estes, manter a ordem e defender as instituições, que eram então as monárquicas. E como estes fizeram bem mantendo-se firmes ao seu juramento e ao seu dever militar, aqueles fizeram mal faltando ao deles. É com esta sua opinião que eu folgo. Estimo-a pela imparcialidade, vindo, como vem, de um republicano.
- Perdão... Não é nada disso... O 5 de Outubro é um caso diferente...
- Diferente? Diferente em quê? - E o Gomes suspendeu calmamente o acendimento do seu cigarro.
- No 5 de Outubro a revolução nasceu de um impulso nacional, correspondeu, por assim dizer, a um mandato imperativo da nação inteira, ou, pelo menos, da sua enorme maioria. Tanto assim que o movimento venceu com facilidade, e com forças aparentemente insuficientes...
- O ter vencido com forças aparentemente insuficientes não é argumento, meu amigo. Num país que está numa situação brilhante de disciplina e de ordem, como então acontecia, e com um governo fraco ainda por cima, um movimento revolucionário, desde que passe de um simples motim, facilmente vencerá, pela repugnância que há em combater compatriotas, e pela falta de hábito em fazê-lo, para que se vença essa repugnância. Deixemos isso da vitória fácil... Ou o sr. pretende basear na facilidade dessa vitória o único argumento a favor do carácter nacional do 5 de Outubro? Se vamos a isso, com muito mais facilidade venceu o chamado «movimento das espadas», com que foi ao poder Pimenta de Castro, sendo portanto consideravelmente mais nacional.
- O movimento das espadas foi um movimento exclusivamente militar, tomou toda a gente de surpresa...
- Exactamente. É isso que eu digo... Basta tomar de surpresa, apanhar os outros sem preparação condigna para vencer, sem que a vitória representa mais que os outros não estarem prontos...
- Espera lá: não é só isso... O movimento das espadas, foi exclusivamente militar; no 5 de Outubro entraram muitos civis...
- Isso quer dizer simplesmente que havia civis que estavam na conspiração e, se estavam, é natural que viessem para a revolução também. (...) O sr. diz que essa traição se justifica pelo facto de o 5 de Outubro ser um movimento nacional, uma espécie de mandato imperativo da nação. E o sr. não me citou argumento nenhum que provasse esse carácter nacional do movimento, (...). O próprio facto, que o sr. citou, de o movimento ter tido poucas forças (...) não é com certeza a melhor maneira de provar que ele representasse um mandato imperativo da nação (...).
- Talvez, Sr. Gomes, eu me exprimisse mal... (...) É a atmosfera, o ambiente, do movimento que provaram bem o seu carácter nacional...
- Oh, amigo Mendes, isso não serve... Reduza lá isso das atmosferas e dos ambientes a qualquer coisa de mais visível. Há-de haver por força sinais evidentes, distintivos, de se um movimento é nacional ou não. (...) Refere-se o sr. por acaso à circunstância, que na verdade se deu, de o movimento ter sido acolhido, em geral, com uma certa simpatia?
- Sim, sim, por exemplo... O que é que isso prova senão que...
- Prova que toda a gente tinha um medo medonho da revolução republicana (...). Em comparação com o que as imaginações aterrorizadas se figuravam do que fosse uma revolução, o 5 de Outubro, que realmente foi brando e limpo, foi um alívio, como o é sempre a realidade, ainda que má, quando a imaginação a figurava muito pior... Essa própria sensação de alívio deve ter despertado em muita gente uma certa hesitação esperançosa... Mas isso, amigo Mendes, são fenómenos posteriores à revolução, ambiente sobrevindo mas não preexistente... (...) Continuo, pois, a não achar aceitáveis as razões que alega para considerar o 5 de Outubro um movimento nacional...
- É difícil de explicar, realmente, mas...
- Vamos lá a ver se com o meu auxílio o sr. consegue desencaixotar a sua lógica... Vamos a um facto concreto (...)... Esse facto é o de ter ficado e durado a República...
- Ora exactamente, é isso mesmo.
- Não é, amigo Mendes, não é... A República tem durado, sim; mas tem durado de uma maneira irregular, cortada constantemente por movimentos vários, monárquicos e outros, e em perpétua atitude de sobressalto, de defesa e de confusão. E como esses vários movimentos não têm sido motins vulgares, de rua, mas revoluções em forma, algumas vitoriosas, em que entram regiões inteiras do país (como na restauração monárquica no Norte) e grandes forças do exército e numerosos civis, tem havido, ao que parece, ambiente e atmosfera para os dois lados. De modo que nada autoriza a que afirmemos que o 5 de Outubro teve mais «carácter nacional» que qualquer outra revolução ou revolta. (...) Mas agora reparo que nos afastámos do nosso caso original... Mesmo que o 5 de Outubro fosse um movimento classificável de «nacional», isso nada tinha com a questão da traição e da deslealdade dos militares e dos marinheiros que o fizeram... É esse, creio eu, o ponto que estávamos discutindo...
- Perdão, alguma coisa tem...
- Que coisa?
- A fidelidade ao juramento é realmente uma coisa importante. Mas há casos em que não é a mais importante de todas. Os interesses supremos da Pátria, que são o mais importante de tudo, podem prevalecer, se for preciso, sobre todos os juramentos e sobre todos os compromissos de fidelidade!
- Ah, sim... É verdade: o Sr. foi germanófilo?
- Eu?!... Eu germanófilo?!... Mas a que propósito?...
- É que esse é o argumento de que se serviu von Bethmann Hollweg naquela célebre declaração em que chamou aos tratados «farrapos de papel». (...) Vamos ao argumento... Se é legítimo faltar ao juramento e é obrigação em favor e defesa dos interesses supremos da Pátria - e por interesses supremos da Pátria entende o sr. sem dúvida aquilo que os revolucionários pensavam ser os interesses supremos da Pátria - porque não é legítimo nos actuais revoltosos, e em todos os outros que se têm revoltado durante a República, invocar o mesmo argumento? O sr. vê neste movimento, por exemplo, homens sérios e que se mantiveram sempre fiéis à defesa da ordem e do cumprimento da disciplina. (...)
- Perdão, sr. Gomes... Eu não nego, nem preciso negar, que pudesse ser boa a intenção dos chefes desta revolta. O que afirmo é que, se a sua intenção era boa, era ao mesmo tempo errada. E tanto era errada, que o movimento não correspondia a uma aspiração nacional, que se deu com ele, apesar de bem planeado, uma cousa que eu ia ainda agora objectar-lhe, mas que guardei para depois para o não interromper... É que este movimento foi sufocado; falhou... E a verdadeira prova da falta de ambiente é essa: falhar...
- Tem graça: outro argumento germânico!
- Outro argumento germânico?
- Sim. Foi o filósofo alemão Hegel que inventou o argumento de que a própria vitória é a justificação da vitória, e que quem vence é que tinha direito a vencer, por isso mesmo que vence. (...) Mas enfim, aqui estamos no mesmo caso de ainda há pouco. (...) A vitória é que prova a legitimidade, o «ambiente» de um movimento? Está bem... Ora o Sidónio venceu...
- E quanto tempo durou a situação do Sidónio, sr. Gomes?
- Durou até ao fim, como todas as cousas. (...) Não durou tão pouco que isso pese como argumento, nem acabou senão porque, estando concentrada num só homem, uma simples bala, isto é, um só homem pôde terminá-la. Mas, afinal, em que é que ficamos? O Sr. tinha-me dito que a vitória de uma revolta é que provava o seu ambiente. (...) Mas o sr. fala-me agora, já não em simples vitória, mas em duração da situação criada pela vitória, o que é uma coisa diferente... Quanto tempo é que uma situação tem que durar para o sr. a considerar legítima?
- Não é durar, meu caro senhor, é a maneira de durar...
- Também já respondi a isso... Já lhe disse que se a vida da República tivesse sido de inteira paz, (...) se poderia com efeito considerar de carácter nacional o movimento que a implantou. (...).
*
«(...) Os partidos políticos, em determinado país e determinada época, têm todos a mesma mentalidade, têm todos virtualmente o mesmo grau, pouco ou muito, de corrupção. Há uma ressalva, que propriamente o não é, a fazer. Os partidos do governo - isto é, os partidos que frequentemente governam, e por isso, em geral, os maiores - agregam mais videirinhos e mais interesseiros, pela simples razão de que os videirinhos e os interesseiros buscam naturalmente os partidos que os podem empregar e recompensar (...). Por outro lado, os partidos da oposição - isto é, os que não vão ao poder, ou não podem ir, ou dificilmente podem ir - agregam, mais que os outros, os elementos perturbadores e anti-sociais, e fazem-no na proporção em que são extremistas (da direita ou da esquerda) (...)»
«(...) Os independentes podem propor-se, e algumas vezes se propõem à eleição. Mas as eleições, nas condições modernas, são a tal ponto matéria de organização e mecanismo que é com grande desigualdade que um independente se pode bater contra os candidatos nomeados pelos partidos. O triunfo de uma candidatura independente é a coisa mais rara deste mundo. (...)»
«(...) Os partidos, ainda, como têm que ter a aparência de se basear na opinião pública, buscam «orientá-la» no sentido que desejam, e assim a pervertem; e, para sua própria segurança, buscam servir-se dela, em vez de a servir a ela, e assim a sofismam. (...)»
«(...) A mais antiga tradição de qualquer país é ele não existir. (...)»
«(...) Um país unânime numa opinião de hábito não seria país - seria gado. Um país concorde numa opinião de intuição não seria país - seria sombras. O progresso consiste na média entre o que a opinião de hábito deseja e o que a opinião de intuição sonha. Figurou Camões, nos Lusíadas, em o Velho do Restelo a opinião de hábito, em o Gama a opinião de intuição. Mas o Império Português nem foi a ausência de império que o primeiro desejara, nem a plenitude de império que o segundo sonharia. Por isso, por mal ou por bem, o Império Português pôde ser. (...)»
«(...) Já acima esboçámos, em simples exemplo ocasional, qual seja a situação presente de Portugal quanto à sua opinião pública. Concentrados dos Filipes ao liberalismo, numa estreita tradição familial, provincial e religiosa; animalizados, nas classes médias, pela educação fradesca, e, nas classes baixas, bestializados pelo analfabetismo que distingue as nações católicas, onde não é mister conhecer a Bíblia para se ser cristão; desenvolvemos, nas classes superiores, a onde principalmente se forma a opinião de intuição, a violenta reacção correspondente a essa acção violenta. Desnacionalizámos a nossa política, desnacionalizámos a nossa administração, desnacionalizámos a nossa cultura. A desnacionalização explodiu no constitucionalismo, dádiva que, em reacção, recebemos da Igreja Católica. Com o constitucionalismo deu-se a desnacionalização quase total das esferas superiores da Nação. Produziu-se a reacção contrária, e, do mesmo modo que na Rússia de hoje, se bem que em menor grau, a opinião de hábito recuou muito além da província, para além da religião, em muitos casos para além da família. Surgiu a contra-reacção: veio a República e, com ela, o estrangeiramento completo. Tornou a haver o movimento contrário; estamos hoje sem vida provincial definida, com a religião convertida em superstição e moda, com a família em plena dissolução. Se dermos mais um passo neste jogo de acções e reacções estaremos no comunismo e em comer raízes - aliás o término natural desse sistema humanitário. (...)»
«(...) As qualidades mentais e morais necessárias para a conquista do poder político, ou tendentes a essa conquista, são inteiramente diferentes daquelas necessárias para governar o Estado. Pode dizer-se, até, que mais se podem ter por opostas que por sequer análogas. Pode haver, é certo, um ou outro homem que ambas reúna, como pode haver quem seja, ao mesmo tempo, filósofo e atleta; mas em ambos os casos se trata de uma excepção, e os dois tipos ou grupos de qualidades permanecem diferentes e até opostos. São três as maneiras de conquistar o poder: a astúcia e a intriga, nos regimes autoritários, como a monarquia absoluta; a eloquência e a capacidade de persuasão, com a concomitante capacidade de mentir, até a si mesmo, para melhor mentir aos outros, como nos sistemas democráticos; e a violência, nos regimes impostos revolucionariamente, sejam eles de que tipo forem. (...)».
«(...) Se a revolução é só da superfície, feita por uma minoria organizada num país desorganizado, e, por desorganizado, apático e servil, então os organizadores da revolução algumas qualidades têm que há que ter o homem de governo: são, pelo menos, chefes e organizadores. Tal foi, em ponto pequeno, a nossa Revolução de 5 de Outubro; tal foi, em ponto grande, a Revolução Bolchevista. Em ambos os casos, a maioria do país era monárquica, sendo apenas, republicana num caso, comunista no outro, a minoria mais bem organizada. (...)»
«(...) A hipnose do estrangeiro é um dos característicos distintivos das nações que não são senão províncias. A hipnose das cidades é outro sintoma de provincianismo. Tudo o que se faz em Paris, por estúpido que seja, é motivo de gesto igual para os macacos da Europa. (...)»
«(...) O que é preciso, pois, é estabelecer uma fórmula de transição que sirva de declive natural para a monarquia futura, mas esteja em certa continuidade com o regimen actual. Essa fórmula de transição, já tentada instintivamente por Sidónio Pais, é a república presidencialista, que, por ser república, não perde continuidade com o actual regimen (...). A tradição não se reata: reconstrói-se. (...)»
«(...) A situação de Portugal, proclamada a República, é a de uma multidão amorfa de pobres-diabos, governada por uma minoria violenta de malandros e de comilões. O constitucionalismo republicano, para o descrever com brandura, foi uma orgia lenta de bandidos estúpidos (...)»


Luiz Ayres d'Abreu in A Propósito do Inevitável